Na cidade vivia um homem que só queria que lhe dissessem carinho. As mortes que já tivera levaram-lhe carinhos que agora eram só memórias. Ficaram saudades. Cemitérios para visitar.
A tristeza ornamentava-lhe a solidão com que amargava os dias que ia sentindo serem a mais.
Com o pouco dinheiro que lhe sobrou de uma desconsolada reforma comprou um canário na esperança de dar um sentido às muitas horas que lhe subjugavam em cada dia.
Passou, então, a viver numa dedicação de carinhoso afecto pelo seu canário.
Dava-lhe de comer. Dava-lhe de beber. Limpava-lhe a gaiola. Espantava-o com as suas solitárias conversas. Com os desconchavados monólogos. Com os desabafos sem nenhum préstimo.
O canário respondia-lhe como sabia. Cantando. Cantava, saltando de poleiro para poleiro, num desassossego de repenicados trinados.
Na cidade passou a viver um homem habitado por uma incontida felicidade. Passou a silenciar a solidão e a querer imitar a linguagem do canário, mesmo sabendo não ter cordas vocais para tão complexos trinados. Mas o carinho que devotava ao canário e que sabia reciproco, fazia-o viver na ilusão de estarem a escrever a mais magnífica sinfonia que humanos ouvidos haveriam de ouvir. O homem começou, novamente, a acostumar-se ao carinho.
Um senhor polícia de patente importante que morava no andar de cima passou a reclamar incómodos. Cantorias esquisitas. Guturais ruídos. Cedos despertares. Olheiras arroxeadas. Falta de apetite.
Num amanhecer com a brusquidão de um assalto, vieram da esquadra polícias armados de sofisticadas pistolas e coletes à prova de bala.
Aos empurrões, querendo chegar à gaiola onde o canário se encolhia junto ao bebedouro, disseram ao homem que agora vivia outra vez carinhos, que assim não podia ser, que era um atentado à ordem pública, uma criminosa subversão, uma falta de respeito pelos poderes democraticamente eleitos, uma desobediência às autoridades. Vinham com intimidações de lhe matar o carinho.
Outra vez.
O homem abriu a liberdade da porta da gaiola ao canário que ficou poisado no parapeito da janela, à espera. Então o homem, jurando carinhos com um estridente trinado, saltou para o vazio. O polícia encarregue de lavrar a o auto, jurou que viu o homem e o canário voarem, juntos, a cantar. E para espanto de todos, o homem que só queria carinho, acompanhava, sem desafinar, os repenicados trinados do canário.
pobres de nós que não tendo mais nada a perder pretendem viver com as aves…e como as aves.
ave que vives em mim
leva-me pela noite
à terra do fogo…
purifica-me
deixa que arda nas cinzas rubras do vulcão
e como phenix na madrugada
faz-me renascer numa pomba branca…
já se sabe que aprecio muito a sua prosa para mim, poética.
Um abraço
Olá Maria Fernanda
Obrigado pelas suas belas e incentivadoras palavras.É um prazer para mim poder contar com os seus comentários.
Abraço
Afonso Batista
Ímpar este carinho.
A liberdade do silêncio, a solidão enterrada e o carinho de todos os sentidos.
Impossível deixá-lo partir sozinho. Grande demais a dor para ficar…
Voarão ainda algures e até mesmo dentro de nós.
Farão as delícias dos que apaixonados pelos sons da natureza, sabem escutar.
Ficaremos nós mais disponíveis e atentos para fazer a diferença acontecer.
Assim, será também a vida a acontecer na sua plenitude.
Parabéns. Carinhoso o tema e tão real.
Obrigado Isabel por tão autêntico e sentido comentário. É uma honra ter a Isabel como minha leitora. Tudo farei por não desmerecer.